6.22.2007

Se essa rua fosse minha...


Cismou que aquela rua tinha nome de poetisa e continuou pensando assim até o final de seu último dia naquela cidade e muito depois.

Mesmo hoje, sem a cidade, a rua ou o nome, ela ainda lembra aquelas calçadas como quem experimenta o melhor dos poemas.

Noturno, aquele caminho abrigava todo o tipo de gente em um abraço largo e lascivo. Pernas para todos os lados da avenida corriam como corre o sangue que ao circular pela artéria de um organismo muito vivo confere a ele a qualidade inevitavelmente pulsante.

E ela pulsava entre putas e punks, entre livros que aguardavam na calçada, no meio de desenhos de todas as cores que em seus segredos revelavam uma parte da cidade que jamais dormia.

E ela ali, misturada aos fumos e gasolina queimada, provando o gosto estranho e doce de caminhar por uma rua de poetisa de todos os tempos; espalhando sempre versos com os olhos pelo simples fato de estar ali.

Prova definitiva de qualquer sentimento extremo, naquela rua tudo parecia reconhecer-se exageradamente infinito dentro de suas possibilidades. Mesmo dentro, o gosto era tão sincero que escorria até manchar todo o corpo de uma vontade louca de ser feliz.

Ainda agora ela insiste – aquela rua foi o poema mais encantadoramente desastroso e por isso mesmo tão verdadeiro. Uma espécie de rascunho tão confortável em seus defeitos que dispensa a idéia de obra-prima.


Uma idéia que, de tão bonita, adia ao máximo a hora de terminar, até se esquecer completamente dela.


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Foto: Rua Augusta - São Paulo - 10/06/2007

11 comentários:

Daniela Lima: disse...

Clara, esse texto é tão lírico e, ao mesmo tempo, tão cinematográfico, que fiquei emocionada.


Amo suas letras, pequena.

4rthur disse...

Antes de acabar de ler já imaginava que "a cidade que jamais dormia" era mesmo Sampa.

E confesso: várias vezes você surpreende com essa habilidade de trabalhar com as antíteses, de falar de agitação de forma serena, como no post anterior, ou de tirar lirismo de cenários supostamente brutos.

L. Rafael Nolli disse...

Olá, Clara, inspirado esse texto sobre essa rua mágica repleta de poesia - ou melhor, essa rua que é a própria poesia, e transforma as pessoas que nela se aventuram a serem e se tornarem poesia. Achei bacana a leveza do texto, que nos conduz como se estivéssemos em verdade atravessando uma rua mágica!

Anônimo disse...

Já havia passado por aqui, mas fiquei com a vergonha e deixei só rastro.
É tudo tão bonito, que nem adiei nada - ainda lembro deste cantinho.
É tudo tão suave.

E é tudo pulsando aqui e acolá, dá pra enxergar dentro das letrinhas. :)

Anônimo disse...

Tenho um amigo poeta: Fabrício Carpinejar...deve ser estranho responder a um coleguinha que seu pai é poeta. Luis F.Verissimo diz que não sabia explicar quando lhe perguntavam a profissão do pai. Escritor?
Não sei porque estou falando tudo isso. Esquece.
Há braços!!

Eli disse...

já estive em ruas que quis trazer embora. em ruas que quis mandar por carta. em ruas que ficaram gravadas em minha memória. ruas sem nome, ruas eternizadas, ruas de chão ou asfalto. ruas são sempre pedaços da cidade e das pessoas. pedaços de histórias... por isso tão atraentes!

Haya disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Haya disse...

E eu me senti bucólica recordando-me de um tempo que não volta mais, de uma rua na qual vivi os melhores seis meses da minha vida. Apenas aquelas luzes, aquelas putas, aqueles prédios, aquele luxo... ai ai, que saudade daquele lugar.

PS: Eu q deletei o comentário a cima, pq escrevi todo cheio de erros de digitação. Affff!

Diogo Lyra disse...

Clarineta, por favor, traga-nos mais desses!!! Primoroso! O melhor de seus escritos! O penúltimo parágrafo então, merece ser repetido para todo o sempre:

"Ainda agora ela insiste – aquela rua foi o poema mais encantadoramente desastroso e por isso mesmo tão verdadeiro. Uma espécie de rascunho tão confortável em seus defeitos que dispensa a idéia de obra-prima".

A última frase deste parágrafo é uma das melhores coisas que eu li nos últimos tempos...

Anônimo disse...

alguma coisa acontece em meu coração...
=)
agora que eu vi a foto to stary night no post anterior.
ai... :~~

Fabrício Fortes disse...

e se nessa rua houvesse um bosque, haveria nele um anjo vulgar de calças esfarrapadas entre os punks e as putas e ao cheiro de gasolina..
cara maria clara, isso foi magnífico!